Harris Tweed, a lã de um povo
O tweed é, provavelmente, o mais famoso têxtil britânico e aquele que simboliza o estilo de vestir dos súbditos de sua Majestade. O mais surpreendente é que, como o Vinho do Porto, também este tecido de lã, na sua expressão mais tradicional, o Harris tweed, é protegido por lei e tem a sua região demarcada
Embora, de tempos a tempos, volte em força, o tweed é muito mais do que uma moda. Este tecido de lã, áspero como o clima das ilhas britânicas e resistente como as suas gentes, é sinónimo de estilo informal britânico. Conhecido nos primórdios como Clò Mòr, um pano longo de lã produzido pelos agricultores escoceses, para uso próprio, em teares rudimentares instalados nas suas casas, cumpriu eficazmente, através dos tempos, o propósito de proteger dos elementos as gentes trabalhadoras destas regiões inóspitas.
Já mais próximo dos nossos dias, ganharia o nome de tweed sem que se saiba bem como. Embora sejam duas as versões sob a origem da nova designação, certezas, porém, não existem. Há quem atribua a designação ao rio homónimo que corre na Escócia e em cujo vale o tecido é há muito produzido. Outros defendem que o novo nome surgiu de um equívoco de um comerciante londrino que terá grafado incorrectamente numa encomenda “tweel”, como se escreve em escocês o britânico “twill” (a resistente trama utilizada na tecedura), dando assim origem ao tweed que acabaria por subsistir.
O tecido de aspecto grosseiro, algo felpudo, em tons terrosos, que se mesclavam na paisagem de vegetação rasteira, viria a ganhar fama inesperada em meados do século XIX, depois de ter sido adoptado pela aristocracia britânica como matéria-prima predilecta para a sua indumentária de lazer. A adesão ao tweed tem como grandes responsáveis a Rainha Vitória e o Príncipe Alberto. Quando o casal real comprou o Castelo de Balmoral, para aí passar grande parte do seu tempo livre a caçar e a passear pelo countryside escocês, deu início a um movimento mimético que levou muitos nobres ingleses a comprarem propriedades na Escócia e a começarem a cultivar um estilo de vida ao ar livre em que o tweed, mercê da sua resistência e qualidades termoisolantes, assentava que nem uma luva.
À semelhança do que já acontecia na Escócia com o tartan, que diferenciava os diversos clãs, esta apropriação por parte das elites desencadeou um fenómeno interessante que consistia em desenhar padrões que distinguissem estas novas propriedades e os seus senhores, os chamados Estate Tweeds, dos quais o Balmoral Tweed, criado pelo Príncipe Alberto, era um dos primeiros.
Esta mania muito britânica de tudo catalogar, que se estende, por exemplo, às gravatas, em que, para além do aspecto estético, os seus padrões servem para identificar o regimento, colégio, universidade ou clube de quem as usa, já existia no tweed. O vasto rol de padrões e texturas já estavam ordenados por categorias.
Essas incluíam denominações que denotavam desde o tipo de ovelhas na origem da lã, Cheviot Tweed ou Shetland Tweed; a sua geografia, o Donegal Tweed, por exemplo, com origem no condado de Donegal, na Irlanda do Norte, ou uma determinada actividade, como é o caso do Gamekeeper Tweed. A estes padrões cativos, que inicialmente estavam reservados a quem de direito, mas que hoje são usados livremente, juntava-se ainda uma larga variedade de motivos e texturas, conferidas pela tecelagem, como o Plain Twill, Overcheck Twill, Plain Herringbone, Houndstooth, entre muitos outros. Esta enorme multiplicidade de padrões e texturas são, conjuntamente com a durabilidade, resistência das fibras e da tecedura, em grande parte responsáveis pela popularidade deste tecido.
Depois desta viragem aristocrática, que lhe conferiu um carácter aspiracional, numa altura em que a revolução industrial já avançava a todo o vapor, o tweed tornou-se no Reino Unido o tecido de eleição das classes médias e do emergente sportsman que fez dele inseparável companheiro de aventura.
No dealbar do século XX, abriram-se-lhe novos horizontes. Pelas mãos de Eduardo VII, chegava a Savile Row, onde ganhava expressão sartorialista e definitivamente tornava-se indispensável no guarda-roupa do homem elegante. O pano rústico ganhava matizes urbanas e novas conotações, a intelectualidade rendiase-lhe e Gabrielle Chanel abria-lhe as porta da alta-costura.
O tweed comporta uma curiosa ambivalência que o leva a ser apreciado, ao mesmo tempo, pela aristocracia e pela contracultura.
Os hipsters e o seu interesse pela indumentária vintage, o renascimento da alfaiataria e o movimento revivalista em torno deste tecido, com o seu ideário anti-massificação, em prol da autenticidade e sustentabilidade, de que a londrina Tweed Run é o expoente máximo, são manifestações desta face alternativa que, de tempos a tempos, catapulta-o para a ribalta.
Hoje, não há fabricante de tecido que não o apresente nos seus catálogos, dentro e fora do Reino Unido. Não poucas vezes, a lã virgem mistura-se com o algodão, caxemira e mesmo fibras sintéticas, em produções mais ou menos industriais. Porém, na Escócia há uma zona em que o tweed continua a cumprir o mesmo ciclo de há séculos.
Harris tweed, O Espírito Original
Desde há muito que as Hébridas Exteriores, um arquipélago formado por algumas ilhas, sendo as mais importantes Lewis, Harris, Uist e Barra, na costa ocidental da Escócia, gozam da fama de aí se produzir tweed da mais alta qualidade.
Este pano, conhecido como Harris Tweed, era tingido, cardado, fiado e tecido pelos agricultores locais com a lã das suas ovelhas e era usado fundamentalmente para consumo próprio. Embora de excelente qualidade, não tinha grande expressão enquanto negócio e, por isso, de pouco serviu quando, entre 1846 e 1856, a grande fome, provocada pela escassez de batata, também se fez sentir na Escócia.
Nesse momento particularmente dramático, revelou-se de maior importância a intervenção de Lady Dunmore, mulher de Alexander Murray, 6º Conde de Dunmore, senhor da Ilha de Harris, que teve um papel fundamental como dinamizadora da indústria têxtil. Com vista a ajudar a resolver os graves problemas de subsistência que os ilhéus enfrentavam, procedeu à encomenda de uma quantidade substancial de tartan da família, tecido à maneira do clò-mòr, e várias peças de fatos para os seus empregados.
Apercebendo-se de imediato do potencial que esta actividade, então marginal, encerrava para as depauperadas populações, impulsionou o seu crescimento. Frequentadora de meios sofisticados, percebeu que o sucesso da sua tarefa teria de passar pela produção de panos mais leves e de acordo com as necessidades do mercado da moda, o que não teve dificuldade em implementar. De seguida, e sempre por sua iniciativa, tratou de promover junto dos seus pares a lã produzida pelos seus rendeiros.
O esforço da ainda hoje venerada Lady Dunmore teve importantes e benéficas repercussões. Nobres e gente rica das ilhas vizinhas seguiram-lhe o exemplo. A procura subiu drasticamente e com ela o número de cardadores, fiadores, tingidores e teares a laborar em todas as ilhas. O êxito das Hébridas Exteriores fez surgir o receio de que outros se aproveitassem e que o produto fosse contrafeito ou adulterado noutras paragens.
Com o objectivo de obviar esta possibilidade, no início do século XX, com a indústria a laborar a um ritmo inédito, foi criada a companhia The Harris Tweed Association Limited, cujo papel era zelar pelas características e qualidade do tweed produzido nas Hébridas.
Este passou a ser, assim, o primeiro a ostentar uma marca, a icónica “orb mark”, a esfera encimada pela cruz de Malta e as palavras Harris Tweed por baixo, com que todas as peças de pano passaram a ser estampadas a partir de 1911 e que é a mais antiga do seu género no Reino Unido.
O Harris Tweed continuou a prosperar e, pouco tempo depois, a fiação manual revelava-se insuficiente para os níveis de produção atingidos. Isso obrigou a que, em 1934, os estatutos fossem ligeiramente alterados de forma a permitir que a lã até aí fiada com a ajuda de uma roda passasse a ser feita por métodos de maior eficiência sem no entanto perverter o espírito artesanal da produção.
A produção não parou de crescer até meados dos anos 60.
Na década de 90, como parte de um processo de modernização e defesa deste importante património que entretanto viu a sua importância económica diminuir substancialmente, foi fundada, no âmbito de um Acto do Parlamento, a Harris Tweed Authority que substituiu a anterior associação.
O novo organismo ficou, através dos seus estatutos, com a responsabilidade de promover e manter a autenticidade, níveis de qualidade e reputação do Harris Tweed. A Autoridade supervisiona a produção em todo o seu ciclo e só quando esta cumpre os princípios definidos nos estatutos a certifica com a estampagem da célebre esfera.
Nesta lei ficou definido que, para que o tweed produzido nas Hébridas Exteriores fosse homologado como Harris Tweed, a pura lã virgem tem de ser fiada, tingida, tecida e acabada manualmente por habitantes das Hébridas Exteriores nas suas casas.
Apesar de algumas ameaças ao longo da sua história e até mesmo o perigo que a contrafacção representa na actualidade, o Harris Tweed continua a ser produzido por cerca de 250 artesãos utilizando os mesmos métodos que os seus antepassados, mas com a qualidade acrescida que o conhecimento actual permite.
Este produto de grande qualidade e versatilidade, que é hoje exportado para mais de 50 países, viu a sua produção mais que duplicada nos anos mais recentes, mercê do interesse suscitado junto de um mercado que procura produtos autênticos que tragam consigo o valor intangível que a história e as gentes envolvidas na sua produção representam. Exemplo a seguir de sustentabilidade económica, o Harris Tweed já demonstrou que a sua resistência vai muito para além dos fios de lã com que é tecido.